Nos próximos meses, a High Court de Londres deverá proferir sua sentença no caso Mariana v. BHP, ação coletiva que reúne mais de 620 mil atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão, em 2015.
O julgamento dessa que é considerada a maior ação ambiental da história inglesa representa um marco para a responsabilidade corporativa global e para a tutela dos direitos das vítimas de desastres socioambientais. Embora a ação tramite no Reino Unido, a legislação material aplicável é a brasileira, abrangendo normas ambientais e de responsabilidade civil. Apenas os aspectos processuais são regidos pelo Direito inglês.
A busca por justiça no exterior por cidadãos brasileiros contra uma multinacional estrangeira não é um fato isolado, mas parte de um processo histórico de enfrentamento de assimetrias na exploração dos recursos naturais do Brasil. Durante séculos, a mineração no país esteve associada à extração de riquezas por empresas estrangeiras, enquanto os impactos ambientais e sociais eram absorvidos internamente, dificultando a reparação efetiva às comunidades afetadas.
O desastre de Mariana insere-se nessa lógica: uma operação de capital internacional causa danos massivos às comunidades locais, levando os atingidos a buscarem responsabilização em jurisdições estrangeiras, onde as empresas podem ser mais efetivamente compelidas a reparar os prejuízos. Esse movimento evidencia uma expansão da soberania territorial da lei brasileira, cujo alcance ultrapassa os limites físicos do país para garantir proteção efetiva às vítimas.
No Brasil, medidas voltadas à reparação dos danos causados pelo desastre de Mariana já foram homologadas pelo Judiciário, incluindo acordos de compensação e programas de reparação socioambiental. No entanto, tais medidas não foram suficientes para assegurar uma reparação integral.
Além das limitações do arcabouço processual brasileiro, que restringe a efetividade de algumas abordagens, o processo nacional não alcança diretamente a controladora estrangeira, uma vez que a BHP não possui sede no Brasil, o que dificulta sua responsabilização no âmbito doméstico. Nesse contexto, a ação coletiva na Inglaterra se torna um instrumento essencial de responsabilização, ampliando as possibilidades de reparação e reforçando a eficácia do Direito brasileiro.
Características dos processos estruturais
Além disso, o litígio contra a BHP rompe com a tradicional dificuldade de responsabilização de grandes corporações por desastres ambientais. Embora o Brasil possua um arcabouço normativo robusto, a assimetria de forças entre as vítimas do desastre e uma multinacional do porte da BHP permite que a empresa utilize estratégias para diluir sua responsabilidade.
O caso de Mariana ilustra essa dinâmica: passados mais de nove anos do rompimento da barragem, milhares de atingidos ainda aguardam indenização, enquanto a complexidade da estrutura societária da mineradora dificulta sua responsabilização direta no Brasil. A possibilidade de litígios transnacionais corrige essa assimetria jurídica, permitindo que as vítimas busquem reparação em jurisdições onde as multinacionais podem ser mais efetivamente obrigadas a cumprir obrigações reparatórias.
A própria condução do litígio reflete as características essenciais dos processos estruturais. Em primeiro lugar, a multipolaridade, com um vasto número de vítimas e partes interessadas, incluindo indivíduos, comunidades tradicionais, organizações ambientais e reguladores. Em segundo lugar, a supervisão judicial contínua, uma vez que as soluções não se limitam a uma sentença pontual, mas podem envolver obrigações progressivas e planos de monitoramento de longo prazo.
Por fim, a flexibilidade decisória, permitindo que o tribunal inglês adote medidas adaptativas conforme o caso se desenvolve, em vez de se restringir a uma solução binária de indenizar ou não indenizar. Essas características demonstram que a aplicação do processo estrutural ao caso Mariana v. BHP não apenas é viável, mas essencial para garantir reparação efetiva e mudanças sistêmicas na governança da mineração.
O julgamento iminente na High Court de Londres não representa apenas um desdobramento jurídico de um desastre ambiental, mas um marco na luta do Brasil por justiça diante da exploração mineral por empresas estrangeiras. A aplicação da legislação brasileira por tribunais estrangeiros reflete um novo paradigma jurídico, no qual a soberania normativa não se limita ao território nacional, mas se manifesta de forma funcional para proteger cidadãos brasileiros onde quer que estejam.
Sob a ótica do processo estrutural, o caso demonstra que a justiça não deve se limitar a reparações financeiras, mas deve promover mudanças institucionais de longo prazo. O reconhecimento da expansão da soberania territorial da lei brasileira abre espaço para futuras ações transnacionais, consolidando um modelo de responsabilização que pode transformar a governança corporativa global no setor mineral. Se a decisão for favorável aos atingidos, o precedente poderá consolidar um novo modelo de responsabilização de multinacionais por danos socioambientais, criando um sistema em que grandes corporações não possam mais se esquivar de suas responsabilidades fragmentando suas operações entre diferentes jurisdições.
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