Vamos conferir a necessidade lógica do processo.
É o impeachment instituto destinado a possibilitar o afastamento de agente político, como o Presidente da República, por forma dada pela Constituição Federal e como os Governadores dos Estados, em observância às normas superiores estaduais, nos casos de instauração de processo para apuração de crimes de responsabilidade.
Essa expressão é de origem inglesa e significa impedimento, obstáculo, denúncia, acusação pública, ou destituição temporária. Em outro sentido define Plácido e Silva[1] como sendo “o procedimento parlamentar cuja finalidade é a de apurar a responsabilidade criminal de qualquer membro do governo instituído, aplicando-lhe a penalidade de destituição do cargo ou função.” Mas a doutrina o tem definido como afastamento do titular do cargo eletivo por deliberação política, inclusive aceita pelo Superior Tribunal de Justiça[2] .
Esse processo tem por objetivo afastar das funções os titulares daqueles cargos, quando responsáveis por atos contrários aos altos interesses do Estado, definidos, em leis especiais, como crimes de responsabilidade. Para os Prefeitos são ditos crimes denominadas infrações político-administrativas.
O impeachment é um processo de natureza essencialmente política e de raízes constitucionais, tendo como objetivo não a aplicação de uma pena criminal, mas a perda do mandato. Ele traduz, em função dos objetivos que persegue e das formalidades rituais a que necessariamente se sujeita, um dos mais importantes elementos de estabilização da ordem constitucional, lesada por comportamentos do Presidente da República que, configurando transgressões dos modelos normativos definidores de ilícitos político-administrativos, ofendem a integridade dos deveres do cargo e comprometem a dignidade das altas funções em cujo exercício foi investido.
Wolgran Junqueira[3] define o instituto, citando conceito de Carlos Maximiliano, informando que “o impeachment tem por finalidade impedir que o indivíduo continue no exercício do cargo, no qual está prejudicando o país (…).”
Não há impeachment de Prefeitos no nosso ordenamento jurídico. Não contempla o ordenamento a suspensão do exercício do mandato com o recebimento da denúncia ou queixa pelo Tribunal e/ou pela Câmara de Vereadores quando da instalação de processo político-administrativo.[4]
O Supremo Tribunal Federal declarou em julgamento de mandado de segurança[5] ser o impeachment um instituto político e não penal.
Inexistem dúvidas de que com o impeachment objetiva-se o afastamento provisório da autoridade pública.[6] Não há como inferir tal possibilidade com a redação do Decreto-lei 201, que regula o processo para apurar crimes comuns e infrações político-administrativas contra prefeitos e vereadores. Era este também o pensamento do saudoso mestre Hely Lopes Meirelles[7].
2. Impeachment de Prefeito.
Inicialmente se faz ressaltar que o Decreto-lei 201 foi recepcionado parcialmente pela ordem jurídica implementada em 1988. Considerado é ele hoje Lei Ordinária, por ser da mesma estirpe.
A doutrina e jurisprudência não são assentes em afirmar a inexistência de impedimento para prefeito municipal. Mas não há disposição expressa no Decreto-lei 201 que permita o afastamento do prefeito no exato instante do recebimento da denúncia pela Câmara dos Vereadores. Dito afastamento ocorre quando o processado é o Presidente da República e o Governador de Estado.
Tratando-se de medida extrema de restrição explícita de direitos, tem-se por imprescindível previsão legislativa para possibilitar o afastamento de prefeito como conseqüência do recebimento da denúncia apresentada na Câmara dos Edis.
A Constituição da República não conferiu ao município competência para legislar sobre matéria processual. A ela cabe privativamente legislar sobre processo, conforme dispõe o artigo 22, inciso I. De forma concorrente, podem os Estados legislar sobre procedimentos em matéria processual, por força do artigo 24, inciso XI.
Assim, entendo que não pode município introduzir o instituto do impeachment no bojo de sua Lei Orgânica ou em outra norma municipal. Sua “Constituição Municipal” sofre limitações incrustadas na norma constitucional maior.
3. Afastamento de vereador
3.1. Afastamento durante o processo.
O Decreto-lei 201 dispunha no parágrafo 2º do artigo 7º que “o Presidente da Câmara poderá afastar de suas funções o vereador acusado, desde que a denúncia for recebida pela maioria absoluta dos membros da Câmara, convocando o respectivo suplente, até o julgamento final. O suplente convocado não intervirá nem votará nos atos do processo do substituído.”
No entanto, foi dito parágrafo revogado pela Lei 9.504/97. Isto fez desaparecer a figura do impeachment do vereador até então existente.
3.2. Ilícitos político-administrativos para o afastamento definitivo.
Os ilícitos político-administrativos são, por disposição do artigo 7º do Decreto-lei 201, em número de três: I – utilizar-se do mandato para a prática de atos de corrupção ou de impropriedade administrativa; II – fixar residência fora do município; III – proceder de modo incompatível com a dignidade da Câmara ou faltar com o decoro na sua conduta pública.
Decorrem, todos eles, da transgressão e princípios básicos de ética político-administrativa a serem necessariamente observados pelos parlamentares municipais.[8] A moralidade administrativa, ao lado da legalidade nas atividades públicas, constitui valores impostergáveis do exercício de toda e qualquer atividade pública.[9]
Pode, é cediço, o vereador praticar um fato tipificado como crime comum e ilícito político-administrativo. Pelo primeiro será processado no juízo criminal comum, dada a ausência de foro privilegiado, e pelo segundo, os acima alinhados, na Câmara dos Edis. O Decreto-lei 201, no entanto, não prevê crimes de responsabilidade para vereador como faz para os prefeitos.
Alguns atos que ferem o decoro parlamentar não configuram crimes, sequer de responsabilidade. Não há previsão legislativa que informe ser crime o fato de vereador residir fora da urbe onde exerce a vereança, v.g.
3.3. Atos interna corporis do Colegiado Municipal
Interna corporis são só aquelas questões ou assuntos que entendem direta e imediatamente com a economia interna da corporação legislativa, com seus privilégios e com a formação ideológica da lei, que, por sua própria natureza, são reservados à exclusiva apreciação e deliberação de Plenário da Câmara. Tais são os atos de escolha da Mesa (eleições internas), os de verificação de poderes e incompatibilidades de seus membros (cassação de mandatos, concessão de licenças, etc.) e os de utilização de suas prerrogativas institucionais (modo de funcionamento da Câmara, elaboração de Regimento constituição de Comissões, organização de Serviços Auxiliares, etc.) e a valoração das votações.
É, induvidosamente, incompatível a função de Presidente da Câmara quando contra ele é instaurado processo político, com caráter punitivo. O regimento interno dá a ele poderes de direção e condução de procedimentos, com margem de discricionariedade.
No entanto, os atos interna corporis — não obstante abrangidos pelos círculos de imunidade que excluem a possibilidade de sua revisão judicial — não podem ser invocados, com essa qualidade e sob esse color, para justificar a ofensa a direito público subjetivo que terceiros titularizem, especialmente quando reduzidos à condição jurídica de denunciados em processo de índole político-administrativa. A jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal jamais tolerou que a invocação da natureza interna corporis do ato emanado das Casas legislativas pudesse constituir — naquelas hipóteses de lesão atual ou potencial ao direito de terceiros — um ilegítimo manto protetor de comportamentos abusivos, iníquos e arbitrários.
Mas é de interesse público o processo instaurado contra agente político, eleito ou não pelo voto, por ser auferente de recursos públicos quando percebe seus vencimentos. É a ele conferido um mandato – outorgado pela sociedade. Deve honrá-lo sob pena de ser destituído. Ninguém é insubstituível, mormente no serviço público.
A sujeição do Presidente da Câmara às conseqüências jurídicas e políticas de seu próprio comportamento é inerente e consubstancial, desse modo, ao regime republicano, que constitui, no plano de nosso ordenamento positivo, uma das mais relevantes decisões políticas fundamentais adotadas pelo legislador constituinte brasileiro. Daí, a observação de Roque Antonio Carrazza[11] que, verbis: “Falar em República, pois, é falar em responsabilidade. A noção de República caminha de braços dados com a idéia de que todas as autoridades, por não estarem nem acima, nem fora do Direito, são responsáveis (…). A irresponsabilidade atrita abertamente com o regime republicano. Cada governante deve ser mantido em suas funções enquanto bem servir.”
4. Impeachment de Presidente de Câmara de Vereadores.
Quanto ao chefe do Poder Legislativo municipal urge considerações importantes e ordem prática. O tratamento do Presidente da Câmara deve ser outro distinto ao dado ao vereador haja vista sua função imperiosa de direção administrativa absoluta do colegiado municipal.
As normas do processo são as mesmas referentes ao de cassação política do Prefeito, por força do § 1º, do artigo 7º, assim redigido: “O processo de cassação de mandato de vereador é, no que couber, o estabelecido no artigo 5º deste Decreto-lei.”
O primeiro problema exsurge logo no recebimento da denúncia. O inciso II do artigo 5º do Decreto-lei 201 prevê:
“II – de posse da denúncia, Presidente da Câmara, na primeira sessão, determinará sua leitura e consultará a Câmara sobre seu recebimento. Decidido o recebimento, pelo voto da maioria dos presentes, na mesma sessão será constituída a comissão processante, com três vereadores sorteados entre os desimpedidos, os quais elegerão, desde logo, o presidente e o relator;”
Vê-se aqui que se a denúncia for oferecida contra o próprio Presidente, pode ele recusar-se a efetuar a leitura em plenário, bem negar-se a consultar os pares sobre o recebimento. Assim, é óbvio e ululante que o afastamento da função de Presidente se torna imperativo inderrogável.
Em outro inciso do mesmo artigo temos:
“ III – recebendo o processo, o presidente da comissão iniciará os trabalhos, dentro de cinco dias, notificando o denunciado, com a remessa de cópia da denúncia e documentos que a instruírem, para que, no prazo de dez dias, apresente defesa prévia, por escrito, indique as provas que pretende produzir e arrole testemunhas, até o máximo de dez. Se estiver ausente do município, a notificação far-se-á por edital, publicado duas vezes, no órgão oficial, com intervalo de dez dias, pelo menos, contado o prazo da primeira publicação…”
A comissão referente é a processante formada por três vereadores. Se a indicação das provas envolver documentos existentes nos arquivos da Câmara surgirá novo imbróglio se a denúncia for contra o presidente. Para isto, comum que surja necessidade de exame de livros ou documentos estantes na secretaria da Casa Legislativa, uma vez que o processado é o gestor da instituição.
Tem o denunciado o direito de produzir os meios de prova que entender necessários à sua defesa. Provas estas se forem possíveis, evidentemente. Previdente, deve sempre se cercar de todo o cuidado para não incidir em ilícitos capazes de levá-lo ao vexame de ver-se processado. Uma boa assessoria contábil é necessária para todo gestor, seja na chefia da Prefeitura, seja na direção da Câmara.
Como conseguir documentos da Câmara se o denunciado for o próprio Presidente da Casa? Muitas vezes é necessária abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar fatos trazidos por terceiros, ou pela imprensa, ao conhecimento dos vereadores e da sociedade, com notícias de que o Presidente da Câmara é um fraudador. Os documentos tornam-se inacessíveis pelo simples fato de ser o delatado o dirigente do Legislativo.
O inciso V do mesmo artigo 5º preceitua:
“concluída a instrução, será aberta vista do processo ao denunciado, para razões escritas, no prazo de cinco dias, e após, a comissão processante emitirá parecer final, pela procedência ou improcedência da acusação, e solicitará ao Presidente da Câmara a convocação de sessão para julgamento (…)”
Pelo visto, o Presidente da Câmara é o encarregado de convocar sessão para julgamento processo político-administrativo. Se for o Presidente o denunciado não fará espontaneamente tal ato. Outra forma não há que atenda ao bom andamento do processo: o afastamento apregoado.
O inciso seguinte, de número VI, acentua:
“(…) Concluído o julgamento, o Presidente da Câmara proclamará imediatamente o resultado e fará lavrar ata que consigne a votação nominal sobre cada infração, e, se houver condenação, expedirá o competente decreto legislativo de cassação de mandato (…)”
Não vai o Presidente da Câmara expedir o decreto de cassação seu próprio mandato. Mais um argumento inferidor do seu afastamento imprescindível.
5. Situação momentânea do Presidente afastado.
Afastar o Presidente de suas funções não impede de fique ele exercendo a função de vereador. A ausência de previsão sobre o tema tem gerado dúvidas. Porém, o parágrafo segundo do artigo 7º, revogado pela Lei 9.507/97, traduz o espírito do legislador de extirpar o impeachment ainda sobrevivente para o vereador.
A ausência de norma legal permissiva do afastamento aliada ao princípio constitucional da inocência antes do trânsito em julgado permite a inferência de que a restrição de direitos recomendada deve ser a mínima possível. Assim, afasta-se o Presidente da Câmara porque, no exercício da função, irá obstruir os trabalhos atinentes ao processo de cassação, mas nada obsta que se decida pela permanência dele na função de vereador, mas sem participar do processo e de votações a ele atinentes, por óbvia relação.
Sobre o tempo de afastamento, deve ser sempre por prazo razoável. Reclamam os doutrinadores que o tempo dos processos judiciais, muitos exacerbados, tornam-se verdadeiros instrumentos de injustiças. O Decreto-lei 201 fixou, no inciso VI do art. 5º, o tempo de noventa dias contados da data da notificação do denunciado. Se neste prazo não restar concluído o processo, redundará no arquivamento com a conseqüente volta do afastado ao cargo de presidente.
O quórum necessário para cassação, afastamento definitivo, será de dois terços dos membros da Câmara, na forma do inciso VI do artigo 5º do Decreto-lei 201/67.
6. Considerações finais.
Por tudo o que fora exposto, é nosso entendimento que há possibilidade do impeachment do presidente da Câmara dos Vereadores. Não há como dar sobrevida a procedimento político-administrativo encetado para apurar irregularidades perpetradas pelo chefe do legislativo municipal sem afastá-lo das funções.
Igualmente tolhida fica comissão parlamentar de inquérito quando procede a levantamento de denúncias que envolvem contas, documentos e procedimentos oriundos da presidência da câmara dos vereadores. Impraticável torna-se o oferecimento de denúncia se há óbice inarredável que impede a apuração.
Se a denúncia é formulada e o denunciado – Presidente – não toma a iniciativa de arredar da chefia, cabe o impeachment para viabilizar o prosseguimento do processo. Só com o afastamento provisório é que se tornará possível a imparcial condução dos trabalhos de apuração.
Por fim, denoto que a decisão definitiva de afastamento pela Câmara é irrecorrível, pois se trata de instância única. Mas a irresignação pode fazer buscar nova apreciação no Poder Judiciário através de ação autônoma e própria, considerando que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (Art. 5º, inciso XXXV, da CF).
A Câmara dos Vereadores deve sempre proferir suas decisões com prudência, serenidade e imparcialidade, perquirindo atentamente os fatos e analisando as razões de sua existência. Todos os vereadores, agindo como julgadores, assemelham-se aos magistrados e como tais devem ser razoáveis neste mister, com a consideração de todos as características e todos os consectários. Isto é importante porque é notório o despreparo de muitos membros do legislativo em diversos rincões do País.
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