Após o corte de ICMS promovido pelo governo de Jair Bolsonaro em julho, os governadores lutam, agora, para reverter ou ao menos suavizar a redução do imposto que representa a principal fonte de receita dos estados.
Para economistas, porém, o problema é maior e anterior a isso, e não é apenas elevar de volta o ICMS ao que era antes que trará uma solução estrutural e de longo prazo para o endividamento crônico que já assolava boa parte dos estados. Isto, de acordo com os especialistas, passa necessariamente por melhorias na gestão e reformas que racionalizem os gastos.
“É muito difícil justificar que os estados precisem de uma alíquota de 30% de ICMS na conta de luz para equilibrar suas contas”, disse a economista-chefe do Inter, Rafaela Vitória.
“O equilíbrio das contas precisa ser feito com uma tributação razoável, o que passa por controle de gastos; mas ninguém quer fazer o ajuste via gasto, e, sim, aumentando imposto ou pedindo ajuda à União.”
Entre as melhorias que deveriam ser feitas, os economistas mencionam a replicação, nos estados, das grandes reformas realizadas ou em debate na União, como a da Previdência e a administrativa.
Uma agenda dinâmica de concessões e de melhora da governança, que ajude a atrair investimentos, também faz parte do receituário.
Rafaela lembra, ainda, que as quedas recentes de arrecadação, após a redução no ICMS, vêm depois de dois anos em que a receita com impostos explodiu e os governos estaduais puderam encher os seus caixas de dinheiro.
Isso significa não só que o corte parte de um nível de bastante alto de arrecadação, como também que há recursos disponíveis para ajudar, agora, nesse caminho.
“Alguns estados podem rever sua dívida, ou podem também aplicar esse dinheiro em investimentos em infraestrutura”, diz a economista.
“O que seria um mau uso é, por exemplo, queimar esse dinheiro para aumento de salários, da folha de pagamento. Aí, daqui a um ano, eles estarão novamente em déficit, como antes da pandemia.”
Teto para o ICMS
Em uma das várias medidas adotadas em meio à escalada da inflação e às vésperas das eleições presidenciais, Bolsonaro editou em julho uma lei que estipulou um teto de 17% a 18% para o ICMS cobrado sobre combustíveis, energia e telecomunicações. Em alguns estados, essas alíquotas chegavam a passar dos 30%.
O ICMS é um imposto estadual e a principal fonte de receita dos estados, representando mais de 80% de tudo que arrecadam com tributos. O resultado é que, tão logo a medida passou a valer, os efeitos já começaram a aparecer.
Em outubro, por exemplo, a arrecadação estadual total foi 9,9% menor que em outubro do ano passado, de acordo com o Boletim de Arrecadação de Tributos Estaduais, do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) do Ministério da Economia. Considerado só o ICMS, a queda foi de 11%.
“Boom” de arrecadação
As quedas mensais recentes, porém, revertem o caminho atípico que os estados vinham tendo nos dois anos anteriores, quando a arrecadação explodiu, ajudada, em boa parte, justamente pelo preço mais altos dos combustíveis e de uma série de outros produtos sobre os quais o ICMS é aplicado.
Só em 2021, a alta na arrecadação total dos estados foi de 24%, de acordo com o Confaz, e, mesmo com as quedas recentes, o caixa formado em 2022 segue com folga acima do que era costumeiramente recolhido antes disso.
A arrecadação dos estados neste ano, apenas até novembro (R$ 683,9 bilhões), é ainda bem mais do que se levantou em 2020 (R$ 611,9 bilhões) e 2019 (R$ 599,5 bilhões) inteiros.
Até então, o quadro que se tinha era o de uma grande maioria dos estados em uma situação crônica de endividamento, de gastos maiores do que a receita e uma capacidade cada vez mais próxima do zero para fazer investimentos ou manter o básico da saúde e da educação funcionando bem.
Reformas estruturais
O economista-chefe da Ryo Asset, Gabriel Leal de Barros, especialista em contas públicas, cita os gastos com Previdência e folha de pagamento como os principais “buracos” financeiros que drenam, hoje, as receitas dos estados.
“Os estados têm que ter uma agenda própria de reforma da Previdência e de reforma administrativa, além de uma grande revisão das renúncias fiscais”, diz.
De acordo com ele, passa dos R$ 100 bilhões tudo o que os estados, somados, deixam de arrecadar em desonerações de impostos concedidas ao longo do tempo.
“Há um espaço enorme para rever isso, o que melhoraria a eficiência econômica deles”, diz. “Para os estados que não atuaram nos problemas estruturais de gastos, qualquer soluço de arrecadação, como esse do ICMS, vai ser muito mais danoso.”
Rombo previdenciário
O economista especializado em contas públicas Raul Velloso, presidente do Instituto Nacional de Altos Estudos (Inae), destaca os custos com as aposentadorias dos servidores inativos como “principal drama dos estados”. “O déficit da previdência de todos eles disparou nos últimos anos, aí eles têm que pagar esse déficit”, diz Velloso.
“Isso retira recursos de outras coisas que poderiam estar fazendo, como os investimentos em infraestrutura, por exemplo, que é de onde cortam e que estão caminhando para zero.”
A reforma da Previdência feita pelo governo federal em 2019 deu direcionamentos e incentivos para que os estados reformulassem também as regras de aposentadoria de seus servidores.
Mas, de acordo com Velloso, que também já foi secretário de Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento, houve poucos avanços até aqui. “A grande maioria não chegou a materializar sua reforma”, diz.
O economista também afirma que uma agenda de privatizações e concessões, como a que tem despontado em estados como Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, é uma alternativa válida para trazer recursos privados para os investimentos que faltam no âmbito público. Ele ressalva, porém, que uma política de desestatização que se reverta em melhora efetiva e perene para o caixa depende em grande medida de uma boa gestão dos recursos.
“O mais comum é eles venderem uma empresa e depois torrar o dinheiro em poucos anos”, diz. “Muitos estados estão com a água no pescoço, mas cai uma receita extraordinária de grande volume e, em vez de usá-la para fazer uma mudança estrutural, eles gastam e não gastam bem.”
Alta temporária
Parte dos especialistas alertam que o “boom” de arrecadação visto nos momentos de inflação alta foi atípico e, tão logo passem seus efeitos, os problemas antigos podem retornar. Com isso, a necessidade de racionalização dos gastos se torna ainda mais premente.
“Uma coisa é o estoque de sobra de caixa, que ficou alto naquele contexto, outra coisa é a despesa, que consome o estoque”, diz o economista e consultor em contas públicas Murilo Viana. “Se há uma queda muito brusca de arrecadação, esse estoque começa a ser consumido rápido.”
A solução, de acordo com ele, não é única e igual para todos. Demanda um “mix de medidas” de controle e “cada estado tem a suas especificidades”, como ter populações mais ou menos jovens ou ter um grau de dependência diferente em relação a repasses da União.
“É bom lembrar que boa parte dos gastos são obrigatórios, não se corta de uma hora para a outra”, diz.
“Por isso reformas da previdência e administrativa são um caminho, bem como melhorar o ambiente institucional para atrair mais investimentos e conseguir fazer concessões e privatizações.”
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