Em meio à pandemia de covid-19, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou que o mundo entrou em uma outra emergência de saúde pública: a infodemia. Com o excesso de informações publicadas por todo tipo de fonte na internet, essa crise torna difícil encontrar fontes idôneas e orientações confiáveis quando se precisa. A OMS ressaltou, na época, que esse fenômeno é amplificado pelas redes sociais e se alastra mais rapidamente, como um vírus, afetando profundamente todos os aspectos da vida.
Nesse caldeirão de conteúdo, grande parte do que circula é dito sem respaldo em evidências científicas e com interesses comerciais e políticos, alerta a diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) Isabela Ballalai. Desde a pandemia de covid-19, o foco dos grupos que disseminam desinformação em saúde tem sido as vacinas, o que impacta os esforços para elevar as coberturas do Programa Nacional de Imunizações (PNI), que completa 50 anos nesta segunda-feira (18/09).
“Logo depois de anunciar a pandemia de covid-19, a OMS anunciou a infodemia. Ainda vivemos isso e vai ser difícil sair dela”, lamenta a médica.
“Por trás disso, existe uma estrutura, é um negócio que gera dinheiro para quem faz. Discordar faz parte, e a ciência precisa de concordâncias e discordâncias. É assim que ela evolui. Mas a ciência precisa se prender a evidências científicas. O médico tem a obrigação de dar sua recomendação baseada em evidências.”
Quando essa campanha de desinformação é combinada a uma baixa percepção de risco das doenças prevenidas pelas vacinas, a diretora da SBIm explica que a hesitação vacinal ganha força, mesmo entre profissionais de saúde. Médicos e enfermeiros, assim como toda a população, estão sujeitos ao bombardeio de informação na internet, e muitas das doenças prevenidas pelos imunizantes se tornaram raras ou controladas justamente pelo sucesso da vacinação.
“A maioria que ouve essas informações fica na dúvida. E, na dúvida, prefere não arriscar na recomendação. E o médico muitas vezes está ouvindo de um colega que ele conhece, porque muitas vezes os médicos chamados [para espalhar desinformação] são médicos conhecidos, ou até um médico que foi professor dele. Então, ele acredita.”
Linguagem apelativa
A desinformação sobre vacinas muitas vezes é alarmante, descreve a diretora da SBIm, e traz um tom exaltado tanto no conteúdo quanto na forma de apresentá-lo, com letras garrafais e coloridas, por exemplo. Esses conteúdos também se aproveitam de vídeos e fotos de adultos e crianças para inventarem histórias sobre situações que não aconteceram ou não estão relacionadas à vacinação.
“Toda vez que receber um post nas mídias de um médico renomado, de uma universidade conhecida, que fala coisas como vacina mata, estão escondendo da gente, coisas sempre muito alarmantes, desconfie. Nós, médicos, não falamos assim, não fazemos terrorismo”, descreve ela, que ressalta que, às vezes, é difícil para o público contestar as informações, que são apresentadas de maneira confusa, assustadora e até acompanhadas de supostas evidências. “Infelizmente, para você validar ou não uma comunicação dessa, você pode ter trabalho. Pode ter um artigo científico que conclui uma coisa completamente diferente de tudo que a ciência está dizendo, e você entra nele e está em uma revista. Mas que revista é essa?”
Ameaça à democracia
A circulação dessas informações já havia sido detectada pela própria Sociedade Brasileira de Imunizações, em pesquisa divulgada em 2019. Dez afirmações falsas recorrentes sobre vacinas foram apresentadas a mais de 2 mil entrevistados nas cinco regiões do Brasil, e mais de dois terços (67%) deles disseram que ao menos uma das informações era verdadeira. O cenário se agravou muito com a pandemia de covid-19 e o uso das redes sociais contra diversas instituições democráticas, como a Justiça, o sistema eleitoral, a imprensa e o próprio PNI.
Nesse contexto, autoridades como o então presidente Jair Bolsonaro defenderam tratamentos ineficazes contra a covid-19, como o que chamou de kit covid, e atacaram medidas preventivas, como o distanciamento social, além de promover desconfiança em relação às vacinas contra a doença.
Esses ataques começaram ainda no desenvolvimento das vacinas, como quando o então presidente compartilhou nas redes que a suspensão dos testes da CoronaVac era "mais uma que Jair Bolsonaro ganhava", após a morte de um dos voluntários. Posteriormente, ficou comprovado que o óbito não teve relação com o imunizante. "Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o [ex-governador de São Paulo João] Doria queria obrigar a todos os paulistanos tomá-la. O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha", escreveu em resposta a um seguidor, em novembro de 2020.
O coordenador do PNI, Eder Gatti, conta que o combate à desinformação em saúde tem sido o primeiro passo de uma ação sistemática do governo federal para combater esse problema em todas as áreas. Gatti afirma que o ataque à confiança nas vacinas acontece de forma sistemática e organizada e acaba levando as pessoas a terem medo de se vacinar ou desconfiarem das vacinas.
“Esse é um mal recente e relativamente pequeno no Brasil, começou agora com a pandemia, mas já causa efeitos sérios nas coberturas vacinais no Brasil e é algo para a gente se preocupar”, alerta.
“A desinformação é algo que ameaça a nossa democracia, é mais ampla que a saúde, e a ação de combate à desinformação está na saúde de forma piloto, inclusive para agir no ataque à desinformação de forma sistemática. Temos um programa estruturado que tem sido testado no sentido de identificar ações que disseminem informação e também de forma a conter o efeito”.
Mercado perverso
Presidente do Instituto Questão de Ciência, a microbiologista e escritora Natalia Pasternak recomenda que o público tenha muito cuidado com postagens, vídeos e notícias que busquem causar medo ou ansiedade, porque essa é uma estratégia usada com frequência na desinformação.
“A informação falsa é feita para emocionar, para deixar a pessoa com raiva, com medo, com vontade de compartilhar e mostrar para todo mundo. Quando você ver uma notícia dessas, com esse sensacionalismo, que foi construída para gerar medo e aterrorizar, desconfie. Esse tipo de notícia tem grandes chances de ser uma propaganda, uma notícia fabricada para enganar, e existe um mercado perverso que movimenta essas notícias e quer deixar as pessoas com medo, para vender produtos e serviços”, denuncia. “Tem gente vendendo reversão vacinal, produtos que detoxificam das vacinas e produtos associados, como livros, newsletter e estilo de vida para não precisar se vacinar. É um mercado que vende desinformação para empurrar remédios, produtos e serviços desnecessários e até perigosos. São pessoas que já estão acostumadas a operar esse mercado perverso de desinformação em saúde e que mudaram o foco depois da pandemia, porque o foco estava nas vacinas.”
Além disso, ela alerta que é preciso desconfiar de informações suspeitas sobre saúde mesmo que elas venham de pessoas próximas que demonstrem ter boas intenções e preocupação em alertar sobre elas.
“Desconfie e acolha. Em vez de apontar para aquele amigo ou familiar e dizer que é um antivacinista, pergunte onde ouviu, quem falou e por que acha isso. Pergunte se checou e se ofereça checar juntos. É preciso lembrar que essas pessoas são vítimas dessa máquina de desinformação. Não são essas pessoas que estão lucrando, elas estão sendo enganadas. É preciso ouvi-las com cuidado e tentar orientar da melhor maneira possível.”
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