Em outubro de 2022, durante a realização de exames de check-up, a dona de casa Terezinha Cardoso Siqueira, de 44 anos, foi diagnosticada com a doença de Chagas. Residente no município norte-mineiro de Monte Azul, durante anos ela viveu na zona rural. “Nos últimos tempos, sem motivo aparente, me sentia cansada. Ao me submeter a exames, os médicos não descobriram nenhuma outra doença, apenas Chagas. Mesmo estando no início de tratamento, a minha rotina de vida não se alterou. Apenas fui orientada pelos médicos para evitar levantar ou carregar objetos pesados”, explica.
Terezinha faz parte das estatísticas dos que já enfrentaram a doença de Chagas no país. De acordo com dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde (MS), estima-se que, atualmente, existam de 2 a 3 milhões de pessoas infectadas pelo Trypanosoma cruzi (protozoário causador da doença de Chagas), no Brasil. Embora a doença tenha sido identificada há mais de cem anos, ela segue causando mortes e sequelas incapacitantes.
Felizmente, Terezinha não teve nenhum comprometimento mais grave pela doença e, agora, segue fazendo tratamento com benzonidazol. Ela se recorda, entretanto, que o marido, que também morava na zona rural de Monte Azul, morreu com 50 anos de idade por problemas cardíacos causados pela doença, combinados com complicações de uma cirrose hepática.
A dona de casa realizou a consulta que resultou no diagnóstico da doença pelo Sistema Único de Saúde (SUS), por meio do Serviço de Atenção Primária à Saúde de Monte Azul, que a encaminhou para ser acompanhada por profissionais do Ambulatório Especializado em Infectologia da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). A unidade funciona no Centro Ambulatorial de Especialidades Tancredo Neves (Caetan), anexo do Hospital Universitário Clemente de Faria (HUCF), inaugurado em novembro do ano passado.
O diagnóstico de Terezinha e os de todos os mineiros que suspeitam da doença de Chagas e fazem os exames pelo SUS são realizados na Fundação Ezequiel Dias (Funed), que é o Laboratório de Referência Nacional (LRN) para o diagnóstico da doença de Chagas. O Laboratório Central de Saúde Pública de Minas Gerais (Lacen-MG/Funed), por meio de seu Serviço de Doenças Parasitárias (SDP), realiza os exames para identificar se a doença está na fase aguda – quando o organismo tem contato recente com o parasita, cerca de 30 a 60 dias após o início da infecção – e na fase crônica, quando a doença já pode causar comprometimentos cardíacos e do sistema digestivo.
A referência técnica em doença de Chagas da Funed, Fernanda Alvarenga Cardoso Medeiros, explica que, como a doença é muito antiga, esse foi um dos primeiros diagnósticos a serem feitos pela fundação.
“Realizamos os exames parasitológicos e sorológicos de imunofluorescência indireta IgM, na fase aguda, e o imunofluorescência indireta IgG, exame sensível para diagnóstico da fase crônica. Também realizamos treinamentos para equipes de saúde de todo o país, para que os profissionais estejam capacitados a realizar o exame adequado de acordo com a fase da doença. Essa é uma etapa fundamental para o sucesso do tratamento do paciente”, afirma.
A Funed também faz a busca e a análise dos triatomíneos (barbeiros) para avaliar se eles estão infectados com o Trypanosoma cruzi, além de avaliar a qualidade dos conjuntos diagnósticos sorológicos para a doença de Chagas crônica, pelas metodologias de ensaio imunoenzimáticos (Elisa), reação de imunofluorescência indireta (Rifi), reação de hemaglutinação indireta (HAI) e testes rápidos imunocromatográficos (TRI) registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e disponíveis no mercado nacional.
A Funed realizou 16.086 diagnósticos de Chagas em 2020, e cerca de 37 mil somente em 2022. Esses dados são compartilhados com a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG), que é a responsável pela análise epidemiológica de ocorrência e distribuição dos casos de doença de Chagas em Minas Gerais.
De acordo com Hérica Vieira Santos, subsecretária de Vigilância em Saúde da SES-MG, de posse das informações de ocorrência e atendimento dos pacientes, as ações prioritárias são definidas por microrregiões, regionais e macrorregiões de saúde. “Esse mapeamento possibilita a avaliação de locais de maior ou menor prevalência, bem como a avaliação de presença de fatores predisponentes à ocorrência de casos e acidentes nas localidades avaliadas, para intervenção e adoção de medidas de prevenção e controle”, diz.
A SES-MG também realiza mensalmente a solicitação de alfacipermetrina para controle químico dos vetores, no caso da doença de Chagas do barbeiro, e faz a distribuição de inseticida de acordo com a situação epidemiológica e solicitações dos municípios mineiros.
Avanço histórico
A atuação da Funed com a doença remonta o início do século 20. Isso porque os pesquisadores Ezequiel Dias e Carlos Chagas, além de amigos e colegas no curso de medicina na Faculdade no Rio de Janeiro, foram parceiros de trabalho com Oswaldo Cruz. Em 1909, Carlos Chagas identificou o protozoário T. cruzi no sangue de uma criança na cidade de Lassance, no Norte de Minas, e realizou um feito único na história da medicina: a identificação do parasita, de seu ciclo evolutivo, do vetor, reservatórios e da doença que, por isso, ficou conhecida como a doença de Chagas.
O contexto da doença e da população mudou muito nesses cem anos. Uma característica fundamental é que, antes, havia muitos casos de doença de Chagas aguda (DCA), em função das condições das moradias e outras questões sanitárias. De acordo com dados do Ministério da Saúde, atualmente, há ocorrência sistemática desses casos relacionados à transmissão oral pela ingestão de alimentos contaminados, principalmente na região amazônica.
Além do diagnóstico, a Funed realiza pesquisas voltadas a soluções que envolvem a doença de Chagas. Um projeto do Serviço de Pesquisa em Doenças Infecciosas (SPDI) da Diretoria de Pesquisa e Desenvolvimento, em parceria com o Serviço de Ciências Bioquímicas (SCB) do Lacen-MG/Funed, tem o objetivo de investigar os casos agudos da doença de Chagas decorrentes de pequenos surtos, causados principalmente pelo consumo de açaí não pasteurizado.
O objetivo do trabalho é detectar a presença de DNA de Trypanosoma cruzi no alimento e caracterizar o parasito nos barbeiros positivos analisados na Funed, etapa que contará ainda com o apoio da equipe de entomologia do Serviço de Doenças Parasitárias. “O trabalho visa padronizar e implantar metodologias de extração de DNA de T. cruzi em amostras de açaí e sua detecção e tipagem por técnicas moleculares como a PCR em tempo real e análises de HRM (do inglês High Resolution Melt) dos produtos gênicos amplificados”, explica Sérgio Caldas, responsável pelo SPDI.
A implantação da metodologia no Lacen-MG/Funed fornecerá dados sobre os riscos de contaminação alimentar por T. cruzi presente no açaí e possibilitará a avaliação da qualidade do produto em Minas Gerais e em outros estados brasileiros, sob demanda de órgãos fiscalizadores.
“Essa avaliação visa subsidiar ações de Vigilância Sanitária, podendo ser implementado um monitoramento contínuo, caso necessário. Os testes iniciais já foram realizados e, em breve, a metodologia será implantada para que o Lacen possa prestar o serviço em casos de surtos ou monitoramento da qualidade do açaí”, finaliza Daniela Peralva Lima, chefe do Serviço de Ciências Bioquímicas.
Ninguém fica para trás
Uma doença tão antiga não consegue ser extinta da noite para o dia. Apesar de o barbeiro Triatomainfestans, principal vetor da Doença de Chagas, estar erradicado, há outros vetores transmissores. Por isso as ações de saúde pública que envolvem a doença precisam ser contínuas. Fernanda lembra que além de melhorar cada vez mais o diagnóstico da doença, outras ações contribuem para o seu controle.
“A participação no projeto "Integra Chagas, para erradicar a ocorrência de Chagas congênita é muito importante: aperfeiçoar o tratamento; intensificar o combate aos vetores; e melhorar o controle dos alimentos no norte do país também são medidas essenciais”, afirma.
Somente o Lacen-MG/Funed e o Lacen do Pará fazem o diagnóstico de doença de Chagas aguda no Brasil. Como referência nacional, a Funed também funciona como um grande centro de orientação e prestação de informação sobre a doença.
“Aqui no laboratório temos um lema, que é não deixar ninguém para trás. Por isso, dedicamos boa parte de nosso tempo atendendo a dúvidas de pessoas de todo o país pelo telefone e e-mail. São médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde que nos procuram com dúvidas diversas. Assim, conseguimos contribuir e aprender sempre”, conta.
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