Em seu boletim semanal epidemiológico, divulgado na última terça-feira (9), a OMS (Organização Mundial da Saúde) emitiu um alerta quanto à possível redução da ação de anticorpos neutralizantes, capazes de bloquear a ação do vírus no organismo, pela variante do Sars-CoV-2 de Manaus, chamada P.1.
De acordo com a organização, “as mutações encontradas na variante P.1 podem reduzir a neutralização por anticorpos; no entanto, estudos adicionais são necessários para avaliar se há mudanças na transmissão, severidade ou ação de anticorpos neutralizantes como resultado dessa nova variante".
No mesmo documento, a OMS relata as possíveis preocupações em relação às novas variantes do coronavírus em circulação, mais especificamente às VOCs (da sigla em inglês, variantes de preocupação).
Já foram identificadas, em todo o mundo, dezenas de linhagens distintas do vírus, mas apenas algumas causam preocupação e necessitam de investigação. Em geral, as VOCs possuem mutações em regiões chamadas domínio de ligação com o receptor, ou seja, são áreas diretamente associadas à entrada do vírus nas células, notadamente na proteína S do Spike (de espícula, o gancho que o Sars-CoV-2 usa para entrar nas células).
Uma dessas mutações, a N501Y, foi identificada inicialmente na linhagem B.1.1.7, encontrada pela primeira vez no Reino Unido no final de 2020 e que já se espalhou por mais de 80 países. Essa mutação, juntamente com uma deleção na posição 69/70 da proteína S, tornaram a VOC202012/01 (ou variante de preocupação de dezembro de 2020/1) mais transmissível e potencialmente mais letal, segundo estudos preliminares.
Ela não estaria associada, porém, a uma redução na ação dos anticorpos que neutralizam o vírus, o que faz com que não afete a eficácia das vacinas em uso.
Por outro lado, as linhagens B.1.351 e P.1, identificadas primeiro na África do Sul e em Manaus, respectivamente, possuem outras mutações não encontradas inicialmente na variante do Reino Unido, em particular a mutação E484K.
Essa mutação, segundo estudos em laboratório, reduziu a ação de anticorpos monoclonais e diminuiu as taxas de anticorpos neutralizantes presentes no soro de indivíduos que receberam as vacinas da Pfizer/BioNTech e Moderna, o que pode indicar sua habilidade de driblar as defesas do sistema imune frente ao vírus.
Embora estudos em laboratório sejam essenciais, eles podem muitas vezes ser distintos do observado no mundo real. Por isso, algumas produtoras de vacinas, como a Johnson & Johnson e a Novavax, testaram a eficácia de seus imunizantes diretamente no país sul-africano. O que esses estudos encontraram foi uma redução na eficácia das vacinas em proteger contra casos sintomáticos da Covid-19.
A Universidade de Oxford e a AstraZeneca testaram sua vacina contra a VOC202012/01 e não houve redução significativa de proteção, mas quando ela foi testada em um pequeno grupo de voluntários na África do Sul contra a variante VOC202012/02 (ou variante de preocupação de dezembro de 2020/2, outro nome para a B.1.351), não garantiu proteção.
O estudo da vacina de Oxford, no entanto, não tem poder estatístico para afirmar que a vacina não é efetiva, uma vez que o número de casos de Covid no braço que recebeu a vacina e nos participantes que receberam placebo foi praticamente o mesmo (19 e 20, respectivamente). A população testada também incluiu apenas indivíduos jovens que apresentaram casos leves a moderados da doença, e não foi avaliada a eficácia para casos graves e hospitalizações. Por isso, mais estudos são necessários.
Em relação à variante P.1, a OMS frisa que o aumento significativo de casos em Manaus de dezembro de 2020 a janeiro de 2021, com uma taxa de positividade do vírus indo de 52% para 85%, pode estar relacionado a uma maior transmissibilidade da nova linhagem, embora isso ainda não tenha sido comprovado. De todo modo, estudos que contestem a variante com as vacinas em uso são fundamentais para saber se há, também, redução na ação dos anticorpos neutralizantes.
Felipe Naveca, pesquisador em saúde pública da Fiocruz Amazônia responsável pelo sequenciamento e identificação da variante, também demonstra preocupação quanto ao potencial mais transmissível da P.1, com base no que foi observado até o momento. Ele afirma que compartilhou com a Fiocruz do Rio de Janeiro 15 amostras de sequência genética do vírus para análise em conjunto com a Oxford/AstraZeneca da ação da vacina contra essa variante, além de soro de pacientes infectados para testar a neutralização.
Na última semana, em uma apresentação virtual sobre as variantes do coronavírus, a OMS entendeu que não há preocupação, à luz da evidência disponível até o momento, quanto à proteção das vacinas contra Covid-19 e as novas variantes.
Uma semana depois, no entanto, a mensagem passada pela própria OMS é a oposta. Além de dados sobre as variantes B.1.351 e B.1.1.7, incluindo a identificação de um pequeno conjunto de amostras sequenciadas dessa linhagem que já possuem a mutação E484K, associada ao escape imunológico, a entidade se posicionou mais enfaticamente em relação à variante P.1 nesta quarta-feira (10).
Para Katherine O’Brien, diretora de imunização da OMS, não é possível tirar conclusões sobre a eficácia das vacinas no combate à variante P.1. “Não faz sentido especular agora, com tantas lacunas de informação, tanto sobre a linhagem, quanto sobre o efeito dos imunizantes”, disse.
De acordo com a diretora, maiores evidências devem ser produzidas nos ensaios clínicos e com o acompanhamento da vacinação no Brasil com o produto da AstraZeneca. “É melhor esperar os dados para reagir. Ainda estamos muito no começo do entendimento sobre a P.1 e sua interação com as vacinas.”
A mudança de tom da OMS, no entanto, é um bom sinal, pois sinaliza o interesse da entidade em aguardar mais dados sobre essa e outras mutações do coronavírus que podem surgir e ainda demonstra uma preocupação com a alta circulação do vírus em locais onde há descontrole da epidemia, um cenário ideal para o surgimento de novas mutações.
Pesquisadores que vêm acompanhando de perto a variante P.1 também são conservadores em relação à possível associação da nova variante com uma segunda onda em Manaus, mas já haviam acendido um alerta quanto a sua possibilidade de fugir da proteção dada pelos anticorpos, principalmente pelos casos de reinfecção reportados, embora esses ainda sejam raros.
"Acredito que estamos observando um misto de um número razoável de casos de reinfecção além de um grande número de novos casos, embora pelo critério de classificação seja difícil confirmar todas essas reinfecções", finaliza Naveca.
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