A quase totalidade da elite política e jurídica brasileira se mantém calada ou é contra aplicar ao funcionalismo, durante a pandemia do coronavírus, a mesma regra estabelecida pelo governo Jair Bolsonaro para a iniciativa privada, ou seja, a possibilidade de suspensão de contratos de trabalho ou redução de até 70% nos contracheques, medida que já atingiu mais de 9 milhões de trabalhadores.
O corte na própria carne tem se restringido ao simbolismo da redução de salário de alguns governadores, prefeitos e secretários estaduais e municipais, por decisão própria.
Alguns até dizem poder discutir a medida para os servidores, mas só em casos extremos, e não há nenhuma movimentação evidente em Brasília, nos três Poderes, para aprovação de projeto nesse sentido.
Em um período em que as demissões se avolumam e não só o salário de trabalhadores da iniciativa privada é afetado, como também o rendimento de empresas, empreendedores e trabalhadores informais, a maioria não respondeu ser contra ou a favor do corte dos próprios salários e do funcionalismo em geral.
O silêncio reflete a posição majoritária no Congresso Nacional, que chegou a aprovar, inclusive, pacote de socorro aos estados e municípios com brecha para que algumas categorias do funcionalismo recebam novos reajustes. Bolsonaro vetou esse ponto, mas o Congresso pode derrubar essa decisão.
Ministros do STF não se manifestaram sob o argumento de que podem ter que julgar questões relacionadas ao tema. Bolsonaro e seus ministros não responderam.
Governadores, prefeitos de capitais e presidentes dos partidos políticos que se manifestaram, assim como o procurador-geral da República, Augusto Aras, foram majoritariamente contra a medida, que precisaria ser aprovada pelo Congresso e sancionada por Bolsonaro para começar a valer.
Os únicos a defendê-la de forma clara para o período da pandemia foram os presidentes do MDB, deputado federal Baleia Rossi (SP), o presidente do PL, Jose Tadeu Candelária, o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD), e o governador do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB), que estima uma perda de arrecadação no estado de R$ 3,4 bilhões até dezembro.
Para ele, uma medida como essa daria maior flexibilidade a governadores e prefeitos no enfrentamento da pandemia.
Os demais ou se disseram contra ou indicaram não trabalhar com essa possibilidade no momento. "Sobre 'corte de gastos', congelamentos etc., creio que a agenda é outra. Somente despesas públicas podem impulsionar o setor privado e nos tirar da maior depressão econômica da nossa história", afirmou o governador Flávio Dino (PC do B-MA), um dos principais líderes da oposição a Bolsonaro.
Presidente do maior partido de oposição, o PT, a deputada Gleisi Hoffmann (PR) vai na mesma linha: "Sou contra a redução do salário de quem quer que seja. Em um momento como esse, nós precisamos garantir renda para as pessoas, para que o consumo permaneça e para que a economia não vá ainda mais para o fundo do poço."
Dono de um patrimônio declarado nas últimas eleições de R$ 189 milhões, o governador João Doria (PSDB-SP), que sempre abriu mão da remuneração, afirmou ter determinado que seus salários de abril a agosto sejam usados na compra de alimentos para atender à população em estado de pobreza e extrema pobreza em São Paulo.
"Sou a favor de que cada um tenha a consciência da sua responsabilidade e da sua capacidade de ser solidário e demonstrar isso na prática."
Sobre o corte no salário do funcionalismo, listou redução de despesas e medidas de austeridade fiscal no estado que, segundo ele, somam R$ 2,3 bilhões.
O governador Wilson Witzel (PSC-RJ) se limitou a dizer, por meio de sua assessoria, ser contra o corte de salário de políticos e do funcionalismo.
O governador do Piauí, Wellington Dias (PT), cortou em 30% o próprio salário e o dos funcionários comissionados, mas se disse contra reduzir o contracheque do funcionalismo.
"Já adotamos a medida de não ter aumento nas despesas de pessoal, exceto para construção de pessoal necessário, plantões, horas extras e compra negociada de folga e férias para quem trabalha no Plano Covid-19".
Eduardo Leite (PSDB-RS) reduziu seu salário em 30% no período, sendo seguido por secretários. Sobre o funcionalismo em geral, afirmou ser favorável ao congelamento das remunerações e disse que, nos maiores salários, poderia haver condição de se discutir redução, "mas é algo que precisaria ser muito bem estruturado."
Entre os prefeitos de capital, à exceção de Kalil, de BH, a tônica foi similar. "A categoria de servidores envolve enfermeiros, professores, guardas municipais, fiscais que estão em campo, dentre outras, e a redução de salários só deve ocorrer em última instância", afirma Luciano Rezende (Cidadania), de Vitória.
Presidente nacional do DEM e prefeito de Salvador, ACM Neto diz ser favorável ao corte salarial dos políticos e gratificações de cargos de confiança (reduzidos em 30% na capital da Bahia, mas afirma que, sobre o funcionalismo em geral, a decisão "depende da situação fiscal e financeira de cada Estado e município".
Prefeito de uma das cidades mais afetadas no país, Arthur Virgílio (PSDB) diz que mandou mensagem para a Câmara Municipal de Manaus para corte de 10% do seus salário e de seus secretários.
"As pessoas que estão em recesso e recebem gratificações, estamos cortando as gratificações por entender que correspondem a um trabalho que não está sendo cortado. Estamos tomando essas providências para não precisar baixar o salário de ninguém, mesmo os servidores que estão de recesso, porque eles estão [de recesso] por deliberação minha e não por culpa deles, e estão prontos para atuar em qualquer momento que eu os chame."
Propostas de redução salarial do funcionalismo chegaram a ser esboçadas no Congresso. O líder da bancada do PSDB na Câmara, Carlos Sampaio (SP), apresentou no final de março projeto de redução escalonada dos salários do funcionalismo, mas o texto ficou na estaca zero.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), também defendeu a discussão da medida, mas recuou após o ministro da Economia, Paulo Guedes, se manifestar no sentido contrário. "Até aqui, parece que não despertou o interesse da sociedade", afirma o presidente do PSDB, Bruno Araújo.
De acordo com balanço detalhado mais recente do Ministério da Economia, 8,1 milhões de trabalhadores foram afetados (o governo usa o termo "beneficiados", pois argumenta que a medida evitou a demissão). A maior parte teve o contrato suspenso, com 54,4% do total.
Diferentemente da redução voluntária em salários de alguns governadores e prefeitos, no plano federal os contracheques permanecem intocados, mesma situação de demais verbas.
Como mostra, a cota parlamentar dos deputados caiu 60% no período da pandemia, em relação a 2019, mas vários deputados mantiveram gastos similares ou maiores do que os de período normais, com itens como combustível e aluguel de automóveis.
Em manifestação feita em abril, a PGR disse não haver avaliação sobre redução salarial ou de verbas no Ministério Público. "E nem seria possível, porque todos os cargos e remunerações no âmbito do Ministério Público da União são definidos por lei."
O presidente Jair Bolsonaro e seus ministros recebem como remuneração mensal pela função R$ 30,9 mil. Congressistas, R$ 33,8 mil. Ministros do STF e o procurador-geral da República, R$ 39,3 mil, que é o teto constitucional.
O valor da aprovação do corte provisório no salário e benefícios de políticos e servidores dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), nas três esferas (federal, estadual e municipal), varia de acordo com os critérios (exclusão da área da saúde e segurança pública, por exemplo) a serem usados. De acordo com alguns cálculos, uma redução de 25% por três meses daria um caixa de mais de R$ 35 bilhões.
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